Revolta da Chibata - 1910



LÍDER (QUASE) ESQUECIDO

Nos cem anos da Revolta da Chibata, relembramos um personagem que é sempre citado, mas pouco conhecido

Ela já foi comparada à rebelião no Encouraçado Potemkin, quando marinheiros do navio russo tomaram a embarcação em protesto contra os maus-tratos aplicados. Mas a comparação é modesta, se pensarmos em termos numéricos. Se na Rússia foram cerca de 500 marinheiros, na Revolta da Chibata, que completa 100 anos no dia 22 de novembro, foram em torno de 2,3 mil homens. Todos pediam o fim dos castigos físicos, como a chibata e o bolo, aumento dos soldos, melhor comida e condições de trabalho em geral.

A Revolta da Chibata também projetou o nome de seu principal líder, o almirante negro João Cândido Felisberto. Cândido se transformou em um herói nacional, estátua em praça pública, símbolo do movimento negro, foi chamado de mestre-sala dos mares por Aldir Blanc e João Bosco, em música cantada por Elis Regina, e já virou enredo de escola de samba. E como todo homem que fica para a História, sua biografia e importância já foi rebatida, dissecada, revisitada, mas ele continua firme e, como sempre, forte.

Essa revolta é tão importante dentro do contexto nacional que aparece em diversas edições da “Revista de História da Biblioteca Nacional”, tendo, inclusive, aparecido na capa da edição nº 9, “Marujada em fúria”. Só para citar um exemplo mais recente: na última edição, um artigo do historiador Álvaro Pereira do Nascimento – um dos maiores especialistas no período – fala sobre os novos achados que revelam detalhes sobre a origem de João Cândido.

Além disso, em comemoração aos cem anos da rebelião, o grupo Teatro Popular União e Olho Vivo (Tuov) vai encenar, gratuitamente, a peça “João Cândido do Brasil - A Revolta da Chibata", no sábado, às 17h, na Associação Brasileira de Imprensa, no Centro do Rio. “Foi feito um levantamento minucioso dos costumes, músicas e principalmente foi levantada a situação sócio, econômica, cultural e política do período. Mais de 200 fichas levaram ao quadro dramático que resultou no roteiro de encenação, privilegiando o trabalho coletivo”, explica o autor e diretor César Vieira. Mais informações: www.cesarvieiratuov.com.br

Muito citado, pouco conhecido
Mas João Cândido, um dos símbolos do movimento negro brasileiro, não fez tudo sozinho. Nem seria possível. Na edição de fevereiro, por exemplo, em artigo assinado por outros dois dos maiores especialistas no período, os historiadores Marco Morel e Sílvia Capanema, aparece outro nome ligado à revolta: Adalberto Ribas. Citado pelo próprio João Cândido em seu livro de memórias “O sonho de liberdade” como um homem branco e com domínio da cultura letrada, além de um dos integrantes da oficialidade rebelde do cruzador Bahia, ele pode ser o autor do manifesto com as reivindicações do movimento contra os castigos corporais enviado ao governo do marechal Hermes da Fonseca, presidente que tinha tomado posse na semana da revolta.

Polêmicas à parte – já que o importante não é saber quem é o dono da letra, mas que o bilhete era um reivindicação coletiva – um dos principais nomes da revolta, apesar de muito repetido, permanece desconhecido. Francisco Dias Martins (1888-1945) é sempre citado ao lado de Cândido como um dos principais nomes do episódio. Até a própria Marinha, que considera a revolta “um acontecimento deplorável”, “um motim planejado e premeditado, que causou mortes e sofrimento a pessoas que não eram criminosas”, admite que Dias Martins era um dos líderes desse capítulo que a Força Armada não gosta de lembrar.

Edmar Morel, avô do historiador Marco e o jornalista que fez, provavelmente, o livro mais conhecido sobre o caso, “A Revolta da Chibata”, conta em uma nota de pé de página de sua obra um pouco sobre a biografia de Dias Martins. Fala sobre a carreira na Marinha desse cearense, de 1906 até 1910, e descreve atitudes quase bipolares na armada: ora era preso por permitir ou cometer atos violentos, ora recebia elogios por bom comportamento e disciplina.

Sobre o episódio da revolta, Edmar Morel escreve que Dias Martins “costuma ser apontado como ‘mentor intelectual’ da rebelião”. O marinheiro era o faroleiro do navio Bahia e, “logo depois do episódio, pediu baixa do serviço militar foi trabalhar numa casa de comércio, o que não impediu que ficasse dois anos preso.” Continua Edmar Morel: “julgado pelo Conselho de Guerra, acusado de exercer ‘predomínio moral’ sobre os revoltosos, foi absolvido, como os demais.”

“Em abril de 1916, a polícia acusou-o de participar de uma conspiração que visava obter, pelas armas, reformas políticas na Primeira República [...]. Entre os planos, estaria a reintegração na ativa dos marujos da rebelião de 1910.”

Mas, o mais importante, o que entra em conflito com uma informação divulgada pela Marinha sobre desavenças entre os dois personagens mais conhecidos do episódio, fica para o final. Segundo Edmar Morel, “Dias Martins manteve amizade com João Cândido até falecer, em 1946”.

Citado em bordados
Historiador e membro da Academia Brasileira de Letras, José Murilo de Carvalho escreveu um artigo sobre João Cândido publicado em seu livro “Pontos e bordados: Escritos de história e política” e na edição de abril de 2006 da RHBN, que aborda en passant sua relação com Dias Martins.

Como sugere o título, o texto de Murilo de Carvalho fala sobre o hábito um tanto curioso de João Cândido: bordar. Em uma das peças analisadas, chamada “O adeus do marujo”, há as iniciais de seu nome (JCF) e as palavras “Ordem” e “Liberdade”, separadas por mãos que se cumprimentam, atravessadas por uma âncora. (Antes de prosseguir, é curioso lembrar que Edmar Morel, em sua nota explicativa sobre Dias Martins, escreve: “[Dias Martins] aparecia nas fotos com uma faixa no pescoço com a inscrição ‘Ordem e Liberdade’.”) Voltando ao texto de Murilo de Carvalho: “Abaixo da âncora, o nome F. D. Martins, referência a Francisco Dias Martins, comandante rebelde do cruzador Bahia. Embaixo, do lado esquerdo, a palavra ‘Liberdade’; do lado direito, a data ‘XXII de novembro de MCMX’, dia do início da revolta.”

Murilo de Carvalho interpreta: “A leitura mais óbvia do bordado é que ele retrate a despedida de João Cândido e Francisco Dias Martins. Este era marinheiro de primeira classe, paioleiro do cruzador Bahia. Tinha apenas 21 anos, alguma educação, e foi por muitos considerado a cabeça pensante da revolta. Ele a teria preparado em várias reuniões realizadas nos navios e em uma casa de cômodos da rua dos Inválidos. Esteve preso na ilha das Cobras com João Cândido e estavam sempre juntos. Aparentemente, mantiveram relações cordiais após a libertação de ambos em 1912.”

No segundo bordado, “vêem-se duas pombas que sustentam pelo bico uma faixa com a inscrição ‘Amôr’. Abaixo da inscrição, um coração atravessado por uma espada jorra rubras gotas de sangue”. “O coração de João Cândido sangrava por alguém”, conjectura Murilo de Carvalho e sugere: “Seria Dias Martins?” Para em seguida contestar: “Não parece provável”. “Embora fosse Dias Martins um jovem de 21 anos, de boa aparência, simpático, diante de quem os próprios juízes do Conselho de Guerra se enterneceram, as relações entre os dois não poderiam ter tido a característica de amor de marinheiro. Apesar da pouca idade e da aparência modesta, Dias Martins fora o organizador da revolta e era superior aos companheiros em capacidade intelectual. Além disso, era marinheiro de primeira classe, como João Cândido, igual na hierarquia. Não consta também que os dois tivessem servido juntos.”

Em segundo plano?
Mas, por que, apesar de ser o “cérebro”, a “cabeça pensante”, o “organizador da revolta” e “superior aos companheiros em capacidade intelectual”, por que Dias Martins não recebeu tantas homenagens e é tão lembrado como João Cândido hoje em dia?

O historiador Marco Morel discorda da hipótese de que Dias tenha ficado à margem da História.

“Dias Martins não ficou em segundo plano. Em uma revolta de 2,3 mil marinheiros, ele é um dos poucos lembrados e citados até hoje. No momento que eclode a rebelião, João Candido virou símbolo, expressão e rosto, não só para a fama, mas também para a repressão”, argumenta o historiador, lembrando das perseguições que Cândido sofreu mesmo anos após a revolta. “Dias Martins foi considerado uma figura de bastidor, por ser associado a um homem com cultura letrada. É um homem bastante reconhecido.”

Já o historiador Álvaro Pereira do Nascimento acredita em outra tese: a falta de documentos confiáveis sobre o personagem. “Falta mesmo pesquisa sobre Dias Martins. Falta fonte. O que eu sei: Dias Martins não ficou em segundo plano. João Cândido é que foi elevado ao primeiro plano”, explica, dando, como argumento o tempo de trabalho: “ele tinha 15 anos de serviço militar”.

Marco Morel também não enxerga uma divisão tão clara dos trabalhos, como Dias Martins sendo o “pensador” e João Cândido, o “executor”.

“Quando ocorre a rebelião, não existe a mesma hierarquia militar. Há uma maneira mais coletiva de agir. Não acredito que tenha havido apenas um mentor e um executor.”

Álvaro Pereira do Nascimento concorda com essa posição, levando em conta o caráter coletivo da ação.

“Ele pode ter sido mentor intelectual, mas várias reuniões foram feitas. Foi fundamental, mas não acho que foi somente mentor intelectual – ou o único.”

Há apenas um único ponto de desavença entre as versões dos dois historiadores: quem é o verdadeiro Mão Negra. O personagem assinou um bilhete colocado sob a porta do comandante do navio que levava a delegação brasileira para as comemorações do centenário do Chile em setembro de 1910. O texto já alertava para a questão da violência contra os marinheiros: “Venho por meio destas linhas pedir não maltratar a guarnição deste navio, que tanto se esforça para trazê-lo limpo. Aqui ninguém é salteador, nem ladrão. Desejamos paz e amor. Ninguém é escravo de oficiais e chega de chibata. Cuidado!”

Marco Morel levanta a hipótese do autor do famoso manifesto ser outro personagem. Já Álvaro Pereira do Nascimento acredita que é Dias Martins. Álvaro leva em consideração uma segunda carta, dessa vez para o presidente, já durante a Revolta, que pedia a saída de “oficiais incompetentes e indignos de servir à Nação brasileira”, mudanças no código “imoral e vergonhoso” da Marinha, “a fim de que desapareça a chibata, o bolo e outros castigos corporais semelhantes”, o aumento do soldo e a educação de marinheiros “que não têm competência para vestir a orgulhosa farda”, terminando com uma frase forte: “tem Vossa Excelência o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada”.

“A mensagem para o presidente era do mesmo teor”, diz Pereira do Nascimento. “Ele tinha reflexão, sabia dos direitos e deveres da República. Ela era um homem que tinha visão muito clara.”

Mas, mesmo na discordância, Marco Morel e Álvaro Pereira do Nascimento afirmam que o importante era o caráter universal do pedido. “Esse manifesto expressa uma demanda coletiva”, argumenta Morel: “Expressa uma reivindicação comum a todos. Nisso, ele se destaca por ter o domínio da cultura letrada. Mas podem ter sido várias pessoas. Havia um conjunto maior de pessoas.”

Mais que heróis, a Revolta da Chibata deixou também a ideia de propostas que englobam todos, não apenas os líderes.

Revista de História da Biblioteca Nacional, 19/11/2010

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